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Ex-Febem vira mestre na USP de Ribeirão Preto

Mais do que de lembranças, Cláudio Luiz da Silva, desde criança,se obrigou a viver de esperanças. Se ficasse, a cada instante, apegado à lembrança de que fora deixado pela mãe em 1978, aos três anos, na unidade do Sama (Serviço de Amparo ao Menor Abandonado), de Bragança Paulista, teria vivido em uma prisão interna maior do que o próprio local, já infernal.

Mas, para conseguir seguir em frente, hoje com 44 anos, ele diz que um fator foi fundamental, além de sua convicção de que iria encontrar seu caminho e se tornar mestre em Saúde Mental da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP (Universidade de São Paulo).

Segundo ele, o fato de ter crescido, desde os sete anos, em unidades educacionais da então Febem (hoje Fundação Casa), foi importante. Pode parecer um paradoxo, mas Cláudio afirma que, ao contrário do que se pensa, as unidades educacionais eram acolhedoras. Ainda mais em comparação com o abrigo em que ficou nos anos anteriores.

E nas unidades em Lins, onde ficou entre 1983 e 1986, e Batatais, onde permaneceu até 1993, as condições, apesar de difíceis para alguém que não tinha família, não impediram seu desenvolvimento.

“As pessoas confundem. A Febem era dividida em três partes: as unidades receptoras, as de transição e as educacionais. Nas receptoras e de transferência é que começaram a haver problemas de superlotação. Era realmente um caldeirão. Eu fiquei apenas seis meses na de transferência e, acho que houve o dedo de Deus, fui transferido para uma educacional”, conta.

Lá, encontrou o “paraíso”, como diz.

“Enfim recebi tratamento, estrutura pedagógica, ecológica, de saúde, de alimentação, condições necessárias para minha integridade.”

Cláudio se mostra sempre afetuoso e gentil, dando a entender que soube como controlar a revolta que poderia crescer dentro dele. A mensagem que passa é a de que aprendeu a ver o mundo com um olhar positivo, apesar dos percalços.

Prisão de crianças

Na época em que ingressou na Febem, Cláudio tinha sete anos e vinha de uma experiência traumática no Sama, em Bragança. Até hoje não sabe por que foi deixado lá, no Sama, por sua mãe. Nunca recebeu visita. E nem tem ideia se tem família, irmãos, tios e tudo o que ajuda uma criança em condições normais a se desenvolver. Tem apenas algumas reminiscências da infância. E sabe que nasceu em Diadema (SP).

“Lembro vagamente de, na minha infância mais remota, estar no colo de três meninas em um cortiço. As imagens vêm como em um sonho. Não sei dizer se eram minhas irmãs. Nunca soube da minha mãe. Certa vez, descobri, por iniciativa minha, que meu pai mora em Maceió. Mas nunca fui procurá-lo. Preciso estar mais preparado. Não é questão apenas da informação.”

A questão é que, já no Sama, ele deu de cara com outras vivências duras, além da do abandono. Era como se ele estivesse sendo castigado por algo que nunca havia feito. O que deveria pensar um menino de três anos nestas condições?

“O Sama em Bragança Paulista não se diferenciava de um manicômio para crianças. Elas ficavam largadas mesmo. E sofriam todo o tipo de violência, física, emocional, sexual. Não havia alimentação adequada, nem escola. Era um presídio de crianças abandonadas. Vivi momentos terríveis.”

Mas, no fim, Cláudio contou com um golpe de sorte. E saiu de lá porque a instituição foi interditada, no momento em que surgiu a Febem. Vivia de acordo com o que decidiam por ele. Antes de ingressar na unidade educacional em Lins, a sensação de insegurança era invevitável. Passou por várias unidades de transferência, sem saber qual seria o seu destino.

“A gente fica sem rumo e sem identidade nesta situação. Eu era uma criança. Nem lembro direito dos sentimentos que tinha na época, era como se eu fosse uma mercadoria indo de um lado para outro.”

Transtornos e escola

Mas o impacto de ter sido acolhido em Lins foi tão favorável que ele viu tudo aquilo como um paraíso. E passou, desde aqueles anos, a acreditar que poderia ir longe, se dependesse dele. Fez amigos, mas não nega que a solidão pesava.

E ele teve de aguentar, como aguenta até hoje. E alguns transtornos cognitivos, adquiridos anteriormente, o fizeram ingressar na escola apenas aos 10 anos, já que ainda tinha um déficit no aprendizado.

“Mas quando entrei na escola (Anita Costa), na própria unidade, não saí mais. Depois que me transferi para Batatais, comecei a ler. Me apaixonei pela leitura. E isso me fortaleceu. Comecei a trabalhar, dentro de programas de inserção social. Prestei concurso. Trabalhei de contíguo, com 15 anos e depois escriturário. Comecei a me apegar aos estudos e, quando saí, estava encaminhado.”

Mesmo assim, deixar aquela vida fechada e se aventurar pelo mundo, aos 18 anos, foi difícil. Cláudio conta que este momento foi sua maior provação. Sentiu-se abandonado, pela segunda vez. E teve de encarar todo o estigma por seu passado na Febem.

“Claro que, em toda a minha infância, fui eu quem tive de dar conta das minhas carências no campo afetivo. Nunca foi fácil, mesmo na unidade educacional, quando apostei em viver. Até hoje tenho sequelas emocionais. Mas acho que, de tudo, o mais duro foi superar o preconceito, conseguir vencer o estigma e me estabelecer como mestre na Universidade de São Paulo. Diria que esta foi a parte mais difícil. Essa foi minha maior superação.”

Naquela nova rotina, ele admite que se sentiu vulnerável. Até recebeu um auxílio, em programa de reinserção que o manteve em uma pensão por alguns meses. Mas não tinha um professor que lhe ensinasse a enfrentar na prática o “mundo lá fora.”

“Quando saí, não tinha noções de inserção social. Não sabia me comunicar direito, lidar com relações sociais. A pessoa fica próxima de cometer erros. Mas o que me ajudou foram as leituras e a própria escola. Consegui me equilibrar.”

Trabalho e mestrado

Aos poucos, Cláudio foi trabalhando como free-lancer em agência publicitária. Conseguiu prestar vestibular em Ribeirão Preto. Formou-se em Filosofia, no Centro Universitário Moura Lacerda, custeando os estudos com vários trabalhos extras, inclusive de garçom.

E, na faculdade, aproveitou a brecha para dar aulas, como professor-assistente. Descobriu sua vocação. Ao se formar, começou a ter uma renda própria como professor. Deu aulas em escolas da rede pública, cursinhos particulares e na universidade. Neste sentido, foi abrindo portas, até ser convidado a ter uma cátedra na faculdade.

Para isso, precisaria de um título de mestre e, percebendo que poderia enriquecer seu currículo em Ciências Humanas, completou o mestrado em Saúde Mental, em março último, na EERP da USP.

“Completei meu currículo, já que agora posso dar aulas em Humanas e na área de Saúde Mental. Acredito que com isso não vou ficar sem trabalho (risos).”

Mas, mais do que falar sobre a sua própria superação, Cláudio acredita que sua história possa ajudar a outras pessoas que saíram da extinta Febem a não se sentirem constrangidos com o passado.

“Em um churrasco de homenagem, que me fizeram em Batatais, soube, por uma moça, que seu marido, com quem ficara casada por 10 anos, morrera e só depois ela e sua filha ficaram sabendo que ele havia passado pela Febem. Ele havia ocultado, por vergonha. Não acho justo que isso aconteça.”

Então Cláudio decidiu tornar pública sua história, que no início pensava apenas em dividir em seu círculo de maior intimidade. Nem todos tiveram sua história, ele sabe que é exceção. Mas vê que muita gente também seguiu um caminho digno.

“Quero contar minha história para evitar que essas pessoas (saídas da Febem) fiquem em silêncio, com medo de contarem suas trajetórias. É duro ficar anos escondendo a própria vida, quando deveriam até se orgulhar do que conseguiram. Não se deve esconder a própria história.”

E, para tanto, ele se baseia em um lema do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980): “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.”

 

Fonte: r7

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